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Jovem passa por três cirurgias e não pode carregar filha após sofrer violência obstétrica

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Com 3,8 quilos e 51 centímetros, Marina nasceu ao som dos gritos do médico e do silêncio da mãe cortada por bisturi. Munidos de revolta, os avós dela denunciaram na delegacia as condições do parto. O dia do nascimento do bebê perdura – não pelas razões esperadas. Um ano e cinco meses depois, Kaila, a mãe dela, passou pela terceira cirurgia para reparar a violência marcada no corpo. Não pode nem carregar a filha, com 12 quilos a mais.

No dia 4 de fevereiro de 2021, Kaila Conceição, 22 anos, foi obrigada a parir, em um Hospital Municipal Edgar Santos, em Entre Rios. Para que a filha de Kaila nascesse, o médico Mário Olímpio Pereira Neto cortou (sem autorização da gestante) o canal entre seu ânus e a vagina, subiu sobre sua barriga (manobra de Kristeller), gritou e cravou nela sequelas físicas e psíquicas. O nome do horror vivido por Kaila é violência obstétrica e o caso rendeu denúncia ao Ministério Público da Bahia (MP).

Eu tinha minha saúde ótima. Sai de casa para parir, algo tão normal todo dia, e pegar um irresponsável desse, que quase me matou. Foi uma situação muito pesada, nenhuma mulher merece”, conta Kaila. 

A violência cometida por Mário Olímpio, atualmente alvo de um processo ético disciplina do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), obrigou Kaila a retornar três vezes a um centro cirúrgico. Uma dessas cirurgias, a de colostomia, tem a mesma idade que a filha – um ano e cinco meses. É o procedimento mais marcante para a jovem mãe, pelo simbolismo das datas.

A colostomia consiste na exteriorização de uma parte do intestino grosso, o cólon, para eliminação de fezes/gases. No parto, um buraco foi aberto entre a bexiga e vagina de Kaila e as fezes escapavam pelo canal vaginal dela, o que exigiu a bolsa de colostomia.   

Depois, vieram a reconstrução do trânsito intestinal e, há duas semanas, a reparação do cólon, em Salvador, a 132 Km de casa. A configuração familiar, inclusive, foi também modificada pela violência obstétrica. Kaila deixou de trabalhar e a mãe dela passou a viver constantemente na casa da filha para auxiliar a ela, o genro e a neta.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) explica que a violência obstétrica se configura quando há ao menos uma de sete violações. São elas: abusos físico, sexual ou verbal, estigma ou discriminação, uso de práticas obsoletas ou não recomendadas (como a episiotomia e a manobra de Kristeller, ambas aplicadas em Kaila), falha na comunicação e falta de estrutura do hospital.

‘Não é só erro médico’

Kaila mora em Subauma, distrito de Entre Rios. Como na localidade não há unidade de saúde, a grávida procurou o Hospital Municipal Edgar Santos, de onde esperava ser regulada para uma maternidade. “Chegando, fui atendida e disseram que tinha que ser internada. Depois veio o médico que fez meu parto”. A gestante tinha dois centímetros de dilatação quando, segundo ela, Mário Olímpio avisou: “Você está pronta para parir”. 

Mas, em partos naturais, o momento certo para nascer é o bebê quem dita e os sinais se expressam na mãe. Isso costuma acontecer no período expulsivo, quando a dilatação do colo do útero da mulher chega a 10 centímetros. A mãe, por instinto, fará força para o recém-nascido sair. Se isso não acontecer, tem início o protocolo médico para início de uma cesárea. 

Entre a fala do médico e o início do parto forçado, foram quatro centímetros de dilatação e cinco horas de distância – das 13h às 18h. Dessa vez, Kaila lembra de uma enfermeira dizer que ela estava com 6 cm de dilatação, portanto não preparada para o parto natural. A mãe dela, sua acompanhante na hora do parto, acompanhou toda a dor vivida em seguida.

“Aí ele começou a me manipular, pedir que eu colocasse para fora. Ele começou a me cortar, fez toques muito dolorosos, não acho que aquilo era normal. Ele começou a subir na minha barriga”, recorda. 

Desorientada, Kaila ainda lembra que uma enfermeira tentou ajudar, depois de questionar as atitudes do médico. Ela foi expulsa da sala pelo médico. Quando Marina nasceu, não chorou. Saiu arroxeada. “Fui tentar pegar ela, ele começou a gritar dizendo que era para eu não pegar”. Kaila não pôde amamentar a filha, nem a segurar. A criança toma manipulados desde o primeiro dia de vida.

Para, momentaneamente, aliviar a dor, Kaila implorou por anestesia. “Não aguentava mais”. Então veio o escuro e, depois, as sequelas daquela tarde – ainda mais vívidas, por exemplo, quando Marina pede colo e a mãe não dá, por recomendação médica.

De acordo com a pesquisa, Nascer no Brasil, da Ensp-Fiocruz divulgada no ano passado, 45% das mulheres atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS) foram vítimas de violência obstétrica entre 2011 e 2012. Na rede particular, o índice é 15% menor para 30%, o que reafirma o peso da desigualdade social nas violências – entre elas, a obstétrica. A Fiocruz realiza, atualmente, levantamento de dados sobre gestantes vítimas de abusos na hora do parto entre 2020 e 2022.

Ministério Público da Bahia atuará no caso 

A denúncia apresentada pelos avós de Marina, quando a bebê tinha 13 dias de vida, está nas mãos do Ministério Público da Bahia (MP) depois de uma série de insistências. O delegado enquadrou o caso de Kaila como “lesão corporal” e abriu inquérito que se arrastou por mais de um ano até ser enviado para o MP, que pode apresentar uma ação penal contra Mário.

A Corregedoria da Polícia Civil foi procurada, devido à demora. “Isso não é somente erro médico, pura e simplesmente, é uma grave violência obstétrica que resultou em graves consequências. O procedimento ficou parado, nem se transformou em ação penal”, conta a advogada de Kaila, Mônica Santana. “Ele destruiu ela e a família de muitas formas”, completa.

O Cremeb também foi acionado sobre o caso, mas não comenta processos individuais, como o contra Mário. Entre 2018 e 2022, o órgão recebeu 4 denúncias sobre suposta violência obstetrícia. Delas, três resultaram em sindicâncias para apuração de infração ética e uma foi arquivada.

Das sindicâncias instauradas, uma foi arquivada e duas resultaram na instauração de Processo Ético Profissional (PEP), ambos em fase de instrução. 

O médico que realizou o parto de Kaila não é obstetra. A reportagem identificou que o clínico geral é formado em Medicina por uma universidade federal no Norte do Brasil e mora em Salvador, em um bairro de luxo. Na Bahia, atuou não só em Entre Rios – há registros de atendimentos em Inhambupe.

O Hospital Municipal Edgar Santos demitiu o médico, mas afirmou que cabia à Secretaria Municipal de Saúde de Entre Rios comentar o caso. Procurada, a secretária da pasta não atendeu. Sem definições judiciais para as violências que sofreu, Kaila revive todos os dias o trauma marcado nela. 

Fonte: Correio24h

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